Além de supermercado, o estabelecimento do senhor Irai Laudo, popularmente conhecido como Dinho no município de Érico Cardoso, no Vale do Paramirim, faz vezes de museu: nas paredes estão expostas fotografias que contam a história da Barragem do Zabumbão, represa em torno da qual orbitam diversas atividades dessa parte do Médio São Francisco e que figura como patrimônio da região. As imagens retratam as primeiras etapas da construção da barragem que entre o sonho dos moradores e a realidade do reservatório capaz de armazenar aproximadamente 60 milhões de metros cúbicos de água, tem quase 90 anos de história.
A barragem, propriamente, ainda é jovem: a conclusão de suas obras data de 2000, tendo assim pouco mais de 20 anos de funcionamento. O primeiro projeto de represamento da água do rio Paramirim, no entanto, foi elaborado ainda nos anos 30 e por décadas esteve no centro das reivindicações dos agricultores da região. O Vale do Paramirim, um conglomerado que abrange diretamente mais de 12 municípios entre o sudoeste e o centro da Bahia, está inserido no semiárido e como tal apresenta um déficit hídrico desafiador para quem vive da agricultura e da criação de animais. Mas a localidade também é presenteada com a existência do rio homônimo – o maior afluente da margem direita do rio São Francisco – que desce da Serra das Almas e corta quase 50km de sertão.
Em 1961, a extinta Comissão do Vale do São Francisco (CVSF) promoveu estudos preliminares que indicaram condições favoráveis para agricultura irrigada no Vale do Paramirim. A análise não foi novidade para a população: a construção de açudes de madeira com o objetivo de perenizar o rio é uma prática secular na região, que sobrevive hodiernamente. Até a década de 90, as barragens de aroeira – madeira típica do sertão nordestino – eram o principal recurso utilizado por lavradores para garantir a irrigação durante os meses de estiagem. Mas a tecnologia, bastante rústica, não é capaz de reter água suficiente, além da localidade rapidamente começar a sofrer com a escassez da madeira e com o desmatamento desenfreado.
Após muitos anos de luta e mobilizações dos agricultores, em 1980 a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF) contratou a empresa construtora que deu início às obras da Barragem do Zabumbão, paralisadas diversas vezes por falta de recursos, até que finalmente findassem em 2000. Anselmo Caires, hoje presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica dos rios Paramirim e Santo Onofre (CBH PASO), acompanhou o processo desde o início: “Trabalhei na empresa que iniciou as obras e conheço a luta por essa barragem desde a sua concepção. Ela existe, sobretudo, pelo poder de mobilização da população local, que quer continuar vivendo e produzindo no Vale do Paramirim”.
O alagadiço cobre uma área de quase 3 mil hectares e é cercado por montanhas, atravessado por ilhas e abriga pássaros, répteis e peixes. Contemplar a imensidão do espelho d’água faz lembrar aqueles versos sobre deitar-se em berço esplêndido. A Barragem do Zabumbão foi construída em um vão de 160 metros, unindo o Morro da Estrela e a Serra do Cruzeiro, formando um reservatório de 8km de extensão rio acima. Com os objetivos iniciais de garantir o abastecimento de água, assegurar a irrigação das lavouras e aumentar a produção, a água hoje serve para beber, dá o peixe e é fonte de lazer.
O engenheiro agrônomo e irrigante José Olímpio, que produz na região desde a década de 80, está entre os beneficiados com a construção da barragem: “A barragem é o pulmão de muitas atividades agrícolas nessa região, quem produz aqui há mais tempo sabe o que isso significa. Pude ampliar a minha produção e sem essa água isso jamais seria possível”, revela o produtor de mangas Palmer e Tommy Atkins, duas variedades americanas que ele cultiva em uma área de 7 hectares. Atualmente, aproximadamente 1000 hectares de terra são irrigadas com as águas do Zabumbão, entre plantações de maracujá, feijão, cana e gêneros alimentícios da agricultura familiar.
Quando da sua inauguração em 2000, a Barragem do Zabumbão recebeu aproximadamente 100 mil alevinos, com destaque para a espécie Curimatá-Pacu, extinta no Rio Paramirim desde a época dos açudes de madeira. Até hoje singram suas águas Piranhas, Traíras, Lambaris e Curimbatás e em maio deste ano o CBH-PASO promoveu o peixamento do local com 60 mil alevinos, dos quais 33 mil de Piau Verdadeiro e 27 mil de Curimbatá, ambas espécies nativas da Bacia do São Francisco. A piscicultura já esteve entre as atividades de destaque na região, mas a população aponta cortes nos investimentos e ausência de assistência técnica adequada. Atualmente cerca de 35 famílias sobrevivem da pesca no lago do Zabumbão e os desafios da gestão dos usos múltiplos da água permanecem: “A barragem tem muito mais potencial para a piscicultura do que o que é atualmente aproveitado, essa é uma das reivindicações pelo seu uso democrático”, avalia Anselmo Caires.
De acordo com dados disponibilizados pela CODEVASF, a Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa) utiliza o reservatório do Zabumbão para alimentar o Sistema Integrado de Abastecimento de Água dos municípios de Paramirim, Botuporã, Caraíbas, Caturama e Tanque Novo, atendendo a aproximadamente 60 mil habitantes. Além disso, indiretamente abastece a jusante o Sistema de Abastecimento de Água dos Municípios de Ibipitanga e Açude, o que permite o atendimento à aproximadamente 10 mil habitantes. Em 2015, o Governo do Estado da Bahia lançou um edital para construir uma adutora, com águas oriundas do Zabumbão, para atender outros seis municípios da região, o que ampliaria a captação de 100 litros/segundo para 523,9 litros/segundo. A medida instaurou um conflito pelo uso da água: o CBH-PASO se manifestou contrário à intenção do governo estadual, apontando que o reservatório não alcançava volumes superiores à metade de sua capacidade e que a nova adutora comprometeria a segurança hídrica dos moradores.
O conflito em 2015 foi um marco para a sociedade civil da região, que se mobilizou contra o Projeto de ampliação do Sistema Integrado da Barragem. Na ocasião, quase cinco mil pessoas foram às ruas de Paramirim protestar contra o início das obras. O CBH-PASO e o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) exerceram importante papel na contenda, promovendo audiências públicas com participação do poder público, usuários da água e sociedade civil. A resolução final foi favorável às reivindicações dos Comitês e da população e a nova adutora não foi construída, mas a lição das mobilizações foi além: na época foi criada a Organização Não Governamental Zabumbão, entidade que atua até hoje pela preservação ambiental da área: “Nosso papel, assim como de toda a sociedade, é fiscalizar para garantir a sustentabilidade da barragem, o que envolve cuidar do seu entorno, preservar a integridade das matas ciliares, mitigar os impactos ambientais da mineração, dentre outras ações necessárias”, explicou Bárbara Leão, presidente da ONG Zabumbão.
Atualmente está em curso a elaboração do Marco Regulatório que estabelece condições de uso do sistema hídrico do Zabumbão. “Nossa maior preocupação hoje é a sustentabilidade hídrica do Vale, vulgarmente falando, garantir que a barragem não seque. Não podemos permitir projetos de ampliação de água que a façam entrar em colapso”, defende Anselmo Caires, que também observa que o Marco Regulatório será de grande valia para os irrigantes da região, que por vezes sofrem com a falta de outorga. Para elaboração do documento, foi constituída uma Comissão de Acompanhamento da Alocação de Água, da qual participam membros dos Comitês, sociedade civil e órgãos públicos relacionados. A Comissão se diz alerta para novos projetos do governo estadual com a mesma intenção de outrora.
O paramirinhense Luiz Carlos Marques, conhecido como Bill, que mantém um site de notícias do município no qual consta um precioso acervo de fotos e filmagens da história de Paramirim, define a Barragem do Zabumbão como o “coração da região”: “Sem o Zabumbão, Paramirim e as cidades próximas estariam padecendo por falta d’água. Esse reservatório nos é indispensável, caso ele não existisse provavelmente nem eu estaria residindo mais aqui”. Luiz também está entre os moradores que desfrutam do balneário turístico da cidade, abastecido com a água que desce da represa formando uma agradável piscina natural, bastante frequentada pela população nos finais de semana, além de destacado ponto turístico. Também é comum a prática de natação e stand up paddle no lago do Zabumbão, garantindo opções de lazer e esporte aos seus frequentadores. A barragem foi além do sonho inicial dos antepassados daqueles que hoje vivem no seu entorno e amplia os limites desse vale fértil que supera a seca.
Assessoria de Comunicação CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Mariana Carvalho
Fotos: Kel Dourado