Em um país onde se registram inúmeras mortes de lideranças indígenas por garantia de sua terra e pelo direito à existência, a luta não recua. Pelo contrário, eles são caciques e agora também são coordenadores, fotógrafos, defensores públicos, estão nas escolas, nas instituições de segurança pública, na política, estão na advocacia. Esse é o resumo de um grupo de indígenas que representa milhares a ocupar espaços importantes dentro da sociedade e que conseguiram transpor barreiras sociais, econômicas e principalmente étnicas.
Os povos indígenas do Brasil por muitos anos precisaram, por vezes, por falta de acesso à educação de qualidade, se fazerem representar por outras vozes, mas a situação tem, definitivamente, começado a mudar. Mesmo com séculos de atraso, comunidades têm ganhado voz e, para além disso, tem feito sua voz ser ouvida e respeitada.
Não era comum ter caciques mulheres. Mas há quase uma década, já é possível ter mulheres indígenas à frente de suas comunidades. Em Itacuruba-PE, onde vive a tribo Pankará, a liderança escolhida pelos encantados foi concedida a duas mulheres, as caciques Cícera e Lucélia Leal. “Acredito que muito pela questão de precisarmos ir ao embate de fato, se pensava que as mulheres não podiam ocupar esse lugar, mas como não se trata de escolha pessoal, nos foi concedida a liderança do nosso povo e hoje a gente preza muito pelo diálogo. Porém, se for preciso o embate, a gente vai” afirmou a Cacique Pankará Cicera Leal, que tem como lema “nada para nós, sem nós”, referindo-se a essa importante mudança estrutural dentro das comunidades indígenas, que se converte no avanço dos povos para além das suas comunidades.
Cícera Leal: A mulher indígena a frente de sua comunidade
Assim como no Brasil, que criou pela primeira vez um Ministério dos Povos Originários assumido por uma liderança indígena, Sônia Guajajara, recentemente, a coordenadoria regional do Baixo São Francisco da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em Paulo Afonso – BA foi assumida, também pela primeira vez, por um indígena. Manoel Uilton dos Santos, da etnia Tuxá, foi escolhido para a regional e destaca a importância do cargo, principalmente ao ser o primeiro indígena a ocupar um espaço pensado para defesa dos seus povos.
“Pela primeira vez tivemos a oportunidade de um indígena estar à frente da coordenação regional do Baixo São Francisco. Sei que junto com a oportunidade vem a responsabilidade de ser indígena e o primeiro a ocupar esse cargo de gestão pública. E nesse sentido, muitos de nós têm o ocupado espaços importantes, usando como exemplo o meu povo: temos o primeiro professor indígena na Universidade Estadual da Bahia do campus VIII, professor Júnior, o primeiro professor indígena do departamento de antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Felipe Tuxá, e a primeira indígena a ocupar a defensoria pública da Bahia, Aléssia Bertuleza Tuxá”, destacou Uilton Tuxá.
Em 2022, a primeira indígena no Brasil aprovada para a carreira de Defensora Pública no estado da Bahia, Aléssia Pamela Bertuleza Santos, tomou posse no Tribunal Regional Eleitoral da Bahia. Da etnia Tuxá, localizada no município de Rodelas, no norte da Bahia, a defensora usou um cocar durante a cerimônia de posse e conta que o caminho não foi fácil. “Sou egressa do sistema público de educação desde a escola básica até a formação superior, onde cursei universidade pública – a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), e fui a primeira cotista indígena a se formar no curso de direito, além de ter sido a primeira da família a ter nível superior”, afirmou, lembrando da luta dos povos indígenas para ocupar a sociedade com voz ativa. “Sou fruto da luta de muita gente que me antecedeu, é uma conquista coletiva. Sou a primeira, mas em breve não serei a única. Considero que atuar na defesa dos povos indígenas não é uma questão de escolha ou oportunidade profissional, é a luta da minha vida. Defender o meu próprio direito de existir e isso independe da minha atribuição institucional”, concluiu.
Aléssia Pamela Bertuleza Santos: Defesa dos direitos dos povos indígenas
Eles também estão nas artes. Na arte de fotografar e retratar histórias e seu povo, o fotógrafo Edgar Kanaykõ Xakriabá, da Terra Indígena Xakriabá, compreendida entre os municípios de São João das Missões e Itacarambi, no estado de Minas Gerais tem licenciatura em Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei) e mestrado em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Fotógrafo do povo indígena Xakriabá, que pertence ao tronco linguístico Macro-Jê da família Jê, subdivisão Akwẽ, tem uma trajetória ligada à vida na comunidade e na escola, tendo estudado na escola Estadual Indígena Xukurank da aldeia Barreiro Preto (Dazakru Apkrẽwakdû). “Ter sempre estudado na aldeia para mim foi um privilégio, ou melhor dizendo, um direito conquistado com a luta das lideranças, caciques e comunidade para que houvesse uma educação indígena diferenciada, uma garantia que nos foi dada a partir da Constituição de 1988. Sempre estive envolvido na constituição e consolidação desse bem viver na escola/comunidade, o que me impulsionou na busca de novos horizontes e de um ‘Nós, povo verdadeiro’. Foi na tentativa de construir uma educação diferenciada indígena que cresci, visando o bem para nosso coletivo, nosso povo, nossa comunidade e eu, enquanto indivíduo membro deste povo, me ofereci como instrumento para a busca deste bem”, afirma.
No trabalho usa a fotografia como ferramenta de luta para os povos indígenas e pensa a produção de imagem como um meio de registro dos aspectos da cultura e da vida de um povo. “Sendo a fotografia e o audiovisual também uma ferramenta de luta para os povos indígenas, ao possibilitar que o “outro” (não indígena) veja com outro olhar aquilo que os indígenas são. Na língua akwẽ, a palavra hêmba significa espírito ou alma, mas também pode significar imagem, fotografia – a fotografia historicamente por assim dizer, é inicialmente malvista entre as comunidades indígenas, que passam a apropriar-se dela como uma forma de ‘revelar o que os olhos não podem ver’. A antropologia reversa proposta pelo artista, realizando a etnofotografia de uma perspectiva indígena, procura estabelecer uma relação com a linguagem que também incorpora o mundo espiritual, atentando-se aos perigos de envolver o sagrado e os elementos secretos que devem ser resguardados segundo preceitos culturais. Neste processo, durante um ritual ou festas, para muitos povos indígenas por exemplo, quem decide sobre o que pode ou não ser registrado não é quem está com uma câmera nas mãos, mas sim as entidades ou os espíritos, mediados pelos pajés, que também negociam com a comunidade. A preocupação e o compromisso com sua comunidade e suas tradições perpassam a produção, sempre atenta ao que é permitido e não permitido, da captura ao uso da imagem, bem como às formas de leitura que seu trabalho encontra junto aos povos”.
Edgar Kanaykõ Xakriabá: Fotografia como ferramenta de luta
A Cacique Cicera Pankará conclui que para que as políticas públicas voltadas aos povos tradicionais sejam mais efetivas, é preciso ampliar a participação dos povos. “Por muito tempo, uma vida inteira, as políticas públicas sempre foram pensadas de cima para baixo. Os governantes e as instituições sempre pensaram que sabiam o que era melhor para a gente, mas com o passar do tempo os povos indígenas, as comunidades foram se politizando, cada vez mais ingressando nas universidades e criando um leque de conhecimento, onde se abriu a mente para entender o que é melhor para seu povo, a partir do ponto de vista da comunidade. Então a gente precisa que a política funcione do nosso ponto de vista para que seja cada vez mais eficaz”, definiu a Cacique.
Assessoria de Comunicação do CBHSF:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Juciana Cavalcante
*Fotos: Edson Oliveira; Acervo Pessoal